O caminho...

Intento, ainda acanhada, entregar-me às letras, sílabas, palavras, frases e o que se pode obter dessa junção. Coisa linda a mistura das palavras.


Sempre fui encantada pela nossa Língua e tive a oportunidade de ter como mentora, na antiga quinta série, a professora de LP Maria Alice.

Seu saber e envolver a todos nós, seus alunos, fez-me, literalmente, apaixonar-me por uma mulher aos onze anos de idade

Paixão platônica, pueril, inocente e verdadeira. Nascida da admiração do saber e ir além fazendo os outros também participarem desse conhecimento espetacular, quanto se trata de se entregar à Língua Portuguesa.

Vivo pelos cantos, tanto internos quanto externos, de caderneta em punho e caneta entre os dedos. Do nada, vejo uma imagem ou ouço uma palavra perdida num bar e dali parto para uma história vinculada à alguma vivência minha, da infância difícil até a executiva promissora, e me abro para o mundo das letras.

Meus dedos percorrem rapidamente a caderneta anotando o que me for possível trazer à tona, num momento posterior, de pura entrega, dedicar-me a misturar palavras, ritmos, sentidos, além, de uma boa dose de singularidade.

É assim que construo sem pressa meus poemas, versos, sonetos, também minhas crônicas, prosas e contos.

Foi a poesia que me salvou de me destruir na minha mais pura e insólita melancolia.

Foi a poesia que me salvou de mim mesma, impediu que eu ultrapassasse a linha da imaginação e fosse para algum lugar nunca antes visitado.

É a poesia, o verso, a magnitude da construção literária que me mostram quem realmente sou.

Oras posso valer até um milhão, mas sei tão bem que não valho sequer um tostão.

Humana sou.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Professão



















Já és homem feito, homem adulto. Já entendes e vivencias as agonias e alegrias da vida.

Já conheces os medos que permeiam nossas existências, rondam nossos caminhos.

Já reconheces em teu dia-a-dia, também, as euforias que a danada da vida nos oferta como se, dessa forma, pudesse compensar-nos pelas peças que nos prega, pelos testes que valentemente nos aplica e pela forma como diariamente nos desafia a dar o próximo passo, a fazer a próxima escolha.

Enfim, meu filho, tu já conheces a capacidade que a vida tem de nos manejar como se fôssemos um bando de marionetes e sempre estivéssemos a dever-lhe algo, tendo assim, que estarmos prontos para lidar com as todas as diversas e inesperadas pelejas do dia-a-dia.

Já sabes também que a vida tem o poder de fazer com que nos sintamos tão impotentes perante algumas situações e, por vezes, prostremo-nos sem ter a menor idéia do que fazer.

A vida tem a capacidade soberana de fazer com que bailemos ao som de suas melodias e, por vezes, também tem a capacidade de fazer com que nos percamos na coreografia quando em determinado momento não fazemos a menor idéia do rumo a ser tomado ou do caminho a ser seguido.

Reconheces rapaz quantas coisas tu já sabes da vida?

Então, por isso, resolvi lhe contar algo que ocorria comigo quando tu ainda eras pequenino e andava através dos meus braços e dos braços do teu pai.

Resolvi te contar algo da época de quando tu, todas as noites de todos os dias da semana, eras ninado ao som de uma diferente canção ora cantada por mim, ora cantada por teu pai.

Nascestes no ano de mil novecentos e oitenta e seis. Nascestes numa época perigosa e perversa onde existiam quadrilhas profissionais que roubavam crianças e vendiam-as para casais de países estrangeiros.

Vivíamos um verdadeiro tropel na cidade de São Paulo. As autoridades tinham perdido o controle sobre essas organizações criminosas. Ficava a cargo dos pais defenderem suas crias com unhas e dentes.

Podes imaginar como essa tua mãe frágil se sentia, não é?

Pois lhe digo meu filho que vivia uma agonia contínua. Fui abandonada pelo sossego. Vivia de sobressalto.

Sendo bem honesta menino eu vivia tomada pelo medo, pela insegurança e por uma dor que machucava meus ossos. Hoje sei que aquela dor espelhava os sentimentos que se firmavam dentro de mim.

Todos os meses te levava ao pediatra para essas consultas de rotina. Íamos somente os dois. Pegávamos uma condução que percorria um trajeto e levava em torno de quarenta minutos até nos deixar no devido local.

Teus olhos azuis confundiam-se com a cor da água do mar. E, como mãe zelosa, eu tanto para te cuidar quanto para reforçar teus encantos cobria-te com roupinhas que somente realçavam o mar espelhado em teus olhos e o dourado dos teus cabelos.

Funcionava mais ou menos assim: Arrumava-te. Na sequência aprontava-me. Munia-me de uma mochila com teus pertences – empunhava-a nas costas, recolhia-o em meus braços, hoje penso no quanto te apertei contra meu peito na esperança de que ninguém tivesse força física suficiente para afastar-te de mim. e caminhávamos até a parada.

Ao entrarmos no coletivo meus olhos percorriam quase todos que estavam ali. Para mim eram nítidos os olhares que se viravam contra nós, ou melhor, contra ti.

Arrepiava-me quando alguém se aproximava e dizia algo. Ao ouvir um cumprimento expressando tua beleza meu estômago gelava.

Recordo-me agora de uma pessoa, num deses percursos mensais, sussurrar algo à mínima distância de nós:

- Tens um menino colorido. Repara mãe: Seus olhos são azuis, suas bochechas cor-de- rosa, seus lábios vermelhos e os cabelos, tão belos, amarelos como o ouro.

Claro que fiquei lisonjeada, mas o medo daquela pessoa abafou por completo o orgulho de ser tua mãe.

Confesso-te hoje meu rapaz que o medo quase que me consumiu por completo. Verdade.

Tinha medo não só dos olhares que lançavam a ti. Tinha medo também dos elogios que emitiam e daqueles mais 'calorosos' que se aproximavam querendo ver-te mais de perto e poder te admirar melhor.

Nas minhas seis horas diárias de trabalho meu pensamento estava sempre em casa, ou melhor, em ti. Imaginava coisas trágicas. Imaginava alguém iludindo tua babá dizendo que te levaria para passear a meu mando.

Nos finais de semana quando teu pai estava conosco o tempo todo conseguia sentir um pouco da brisa da paz. De leve.

Não sei se tu te lembras que todos os domingos almoçávamos, religiosamente, na casa da tua vó Geralda. Ainda não tínhamos carro então íamos de ônibus.

Teu pai fazia questão de te carregar. Sabe que parecia que ele flutuava com você nos braços? Verdade.

Eu ficava encarregada de levar tua mochila. Dentro dela as coisas que previa que poderias necessitar.

Mesmo sentindo a brisa leve da paz que teu pai me proporcionava nos finais de semana ainda assim mantinha-me uns setenta por cento em estado de alerta. Qualquer pessoa que chegava em nossa casa me pegava de prontidão.

Nunca tinha falado dessa aflição para ninguém. Foi numa segunda-feira, à noite, que chamei teu pai e sussurrei ao pé de seu ouvido:

- William, tenho medo de que alguém roube o João Gabriel.

Foi então que ouvi aquilo que me libertaria do medo. Ouvi aquilo que me salvaria da dor que se amontoava no meu estômago:

- Gill, se um dia isso acontecer nem que eu tenha que ir até o inferno trago nosso menino de volta.

Aquelas palavras devolveram-me a tranqüilidade. Afinal ele afirmara que te buscaria em qualquer lugar do mundo. Meu alívio foi imediato. Restaurava-se naquele momento a tranqüilidade que havia perdido em meu coração.

Hoje penso que poderia ter confidenciado a ele com mais antecedência. Dessa forma, libertaria-me logo do medo, porém hoje também penso que na vida há um momento apropriado para tudo.

Confidencio-te isso meu rapaz para que saibas que teu pai, com poucas palavras, foi capaz de arrancar com a mão o medo que se estabelecera dentro de mim.

Hoje reconheço o quanto sou grata a ele por ter me devolvido a paz. Naquele dia, quando ele terminou de falar parecia que tinha me devolvido todo o alívio perdido em poucos meses.

Serei eternamente grata a teu pai.

Ele foi o meu herói. Primeiro que não deixaria ninguém te levar, segundo que iria te buscar fosse aonde fosse.

Percebo agora que resolvi te contar essa história somente para te dizer o quanto meu amor por ti é grande. Faz-se descompensado, exagerado, inigualável.

Por fim, fique sabendo moço bonito que sempre senti por ti esse amor vigoroso.

Agora, homem feito, já aprendestes a lidar com minha forma de amar assim como aceitá-a. Só pra te relembrar: Isso é para sempre, tá?

Será que esse é o preço que pagarás enquanto viveres por teres sido gerado por mim?

Era isso que tinha para lhe confidenciar meu querido.

Com amor

‘Mãezinha’.

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