O caminho...

Intento, ainda acanhada, entregar-me às letras, sílabas, palavras, frases e o que se pode obter dessa junção. Coisa linda a mistura das palavras.


Sempre fui encantada pela nossa Língua e tive a oportunidade de ter como mentora, na antiga quinta série, a professora de LP Maria Alice.

Seu saber e envolver a todos nós, seus alunos, fez-me, literalmente, apaixonar-me por uma mulher aos onze anos de idade

Paixão platônica, pueril, inocente e verdadeira. Nascida da admiração do saber e ir além fazendo os outros também participarem desse conhecimento espetacular, quanto se trata de se entregar à Língua Portuguesa.

Vivo pelos cantos, tanto internos quanto externos, de caderneta em punho e caneta entre os dedos. Do nada, vejo uma imagem ou ouço uma palavra perdida num bar e dali parto para uma história vinculada à alguma vivência minha, da infância difícil até a executiva promissora, e me abro para o mundo das letras.

Meus dedos percorrem rapidamente a caderneta anotando o que me for possível trazer à tona, num momento posterior, de pura entrega, dedicar-me a misturar palavras, ritmos, sentidos, além, de uma boa dose de singularidade.

É assim que construo sem pressa meus poemas, versos, sonetos, também minhas crônicas, prosas e contos.

Foi a poesia que me salvou de me destruir na minha mais pura e insólita melancolia.

Foi a poesia que me salvou de mim mesma, impediu que eu ultrapassasse a linha da imaginação e fosse para algum lugar nunca antes visitado.

É a poesia, o verso, a magnitude da construção literária que me mostram quem realmente sou.

Oras posso valer até um milhão, mas sei tão bem que não valho sequer um tostão.

Humana sou.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Oi pai, voltei










Oi pai, comi porra nenhuma. Tomei um copo de leite e fumei dois cigarros. Fiquei um pouco deitada de barriga pra cima deletando as pastas do meu celular. A merda já não tem quase aplicativo nenhum. Mas é mais forte do que eu. Não aguento passar por elas - aquelas pastinhas filhas da puta amarelinhas - olhar para a tecla 'del' e não pressionar. Verdade, nem consigo mais gravar uma porra de uma música sequer e olha que a bicheira é top de linha. Quem diria hein pai que um dia eu ia andar com dois celulares de primeira? Um motorola fudido e um samsung que só falta falar. Tem até TV a merda. Não sei pra que. Acho que pra acabar ainda mais com a vista da gente.

Eu deletei o aplicativo de gravar músicas mas esse foi sem querer, afinal cê sabe que eu não passo sem uma canção. No meu note tem mais de 300 músicas gravadas e sabe o que é mais foda é que só ouço a Joni Mitchell. É. E o mais foda ainda é que dela eu só ouço "Both Sides Now". Sério, pai. Se eu ficar 30 horas na frente dessa telinha eu fico as 30 horas ouvindo a porra dessa música. Sabe, quando eu escuto parece que meu sangue vai sair jorrando pelos meus poros. Chega a doer e você sabe que eu adoro carregar uma cruz. Devia ter vivido na época de Jesus. Tenho certeza de que com meu nível de argumentação mais esse jogo todo de dramaticidade eu teria convencido aquele cara, o tal que mandou crucificar o moço, como é mesmo, ah, sei lá, teria convencido ele me deixar carregar em forma de revezamento a madeira em x com o Jesuzinho. Coitado. Gosto dele pra caramba. Sério pai. Sou fã dele. Mesmo não acreditando em deus, e ele disse ser filho dele, isso eu relevo, porque para mim ele foi um puta cara corajoso ao anunciar alto a frase: 'Amai-vos uns aos outros'. Nossa, como ele pode dizer isso? Tinha que ser muito macho mesmo e muito bom. Que puta coração. Que sensibilidade. Quanta generosidade: 'Amai-vos uns aos outros'. Olha só que oferenda. Meu, pai, isso é lindo. Isso é tão lindo. Acho que mesmo que eu viva trocentos milhões de anos jamais ouvirei algo semelhante. Tenho certeza de que nunca ninguém será capaz de dizer algo que chegue aos pés ou a terra disso aí. Puta frase fudida. Chega a doer de tão linda e de tão poderosa. Eita homem fudido né? Conquistou o mundo de chinela e só usou a palavra. Puta merda, que história bonita, por isso que eu relevo quando ele delirou e disse que era filho de deus. Isso perto do que ele fez e falou virou merdinha. Digno de se descartar.

Pai, lembrei que no sonho nós comentávamos da geladeira vermelha. Lembra dela? Aquele estrupício que tinha em casa quando você chegou aos pouquinhos. Nossa. Eu tinha uma vergonha do cão daquela geladeira. Morria de vergonha de quando as meninas da escola tinham que ir em casa fazer trabalho. Acho que eu ficava mais tempo em pé tentando esconder a merda do estrupício com meu magro corpo do que colaborando com a tarefa.

Pai, cê sabe né que com você eu consigo falar pra caramba. Bem diferente do que com a mãe. Lembra quando eu cortei os pulsos? Eu não quis que ela fosse na Santa Casa ficar comigo. Eu quis que você ficasse comigo. Eu já te contei tanta coisa que eu não contaria pra mãe nunca. Que merda isso né? A nossa intimidade ficou em algum lugar que eu não faço idéia alguma de qual seja menos ainda de em qual tempo parou. Simplesmente, acho eu, pensamento melhor, que nunca houve. Coitada da mãe né? Trabalhava feito doida pra criar os 4 filhos. A semana inteira naquela bosta daquela fábrica de linguiça, lugar podre, e de final de semana fazia faxina e passava roupa lá na Vila dos Remédios, na cada daquela metida a besta.

É, ri não pai. Eu sei que foi aí que você meteu os zóião na muié. Também né como ela era bonita ainda é. Puta corpo, cabelão e uma pele danada. Lembra de que quando ela saia com a Gil (Gil – Gilvanice, a mais velha - a impostora porque Gil sou eu a Gilvânia a verdadeira Gil ou será vice versa por ela ser mais velha?), lembra que pensavam que elas eram irmãs? A mãe trabalhou duro pra caramba, né pai, mas também namorou pra caralho. O que era de homem batendo naquele portão tá louco, eu tinha uma puta vergonha. E olha só, ela escolheu você um cara meio baixinho, meio gordinho, meio pobrezinho, assalariadinho, enfim, meio coitadinho né? Tô brincando pai, escolheu você porque viu que você era e é o cara mais maravilhoso do mundo e que nunca deixaria nem deixou atrasar um aluguel, que nunca deixaria nem deixou de fazer mercado num mês, de que nunca deixaria nem deixou passar uma sexta-feira sem a gente ir na feira, de que nunca deixaria nem deixou faltar mistura, nem atrasar luz e o cacete a quatro né não?

Lembra de quando a gente mudou da casa de dois cômodos pra quatro? Puta que pariu. Da miséria pra vida de madame. Casa de quatro cômodos, que porra era aquela? Ainda por cima sobrado, dois quartos, sala com uma puta TV colorida, sofá. Vixi maria.

Lembra que eu era a única - puta merda hein a Nena e a impostora da Gil eram muito filhas da puta porque trabalhavam mas não davam um tostão em casa, não ajudavam em porra nenhuma, agora cê lembra de mim? Comprava cortina, tapete, lençol, aparelho de som parcelado, tudo lá na Sears, isso com 16, 17 anos, de sábado metia água no banheiro, deixava brilhando, depois quando eu fui fazer colegial, nossa pai eu queria fazer mecânica mas só tinha eu de mulher na sala, então eu fiz programação e nunca aprendi a porra da linguagem cobol, lembra que fui eu mesma que paguei?

Pai!!! E a casa que a gente comprou? A gente vírgula né? Mas cê lembra que eu tinha acho que uns 18 e ajudei a compor renda que a porra da escritura tinha teu nome e o meu? Cê lembra de quando a gente saiu da Caixa Federal e foi num rodízio e comeu pra caralho? Meu que puta orgulho, tá certo que não ajudei a pagar as prestações mas meu, o meu nome tava lá junto com o teu. Nossa, que lindo lembrar isso, pai. Que lindo.

Pai, sabe outra coisa que nós falamos no sonho? Dos livros e dos discos em vinil. Você me falou que eu ia numa livraria na rua Direita no centrão e abria um crediário em doze parcelas. Chegava em casa carregada pelo Marx, Tolstoi, Lispector até as tampas, e Olívia Hime, Válter Franco, Pink Floyd. Nossa pai. Cê acredita que eu ainda tenho isso? Não consigo me desfazer não. De jeito nenhum.

Eu pus um monte de coisa fora mas tem alguns que não dá. Pink Floyd é um exemplo. Eu tenho em CD e em vinil. Pai, não dá pra por fora e você sabe mais do que eu que sou mão aberta pra caramba. Que ganhei uma puta grana na minha carreira de executiva, dinheiro feito louca. Que com 22 anos ganhava 4 pau por mês e tudo que eu comprei foi AP (puta AP, né) e tive carro a vida toda. Lembra quando eu morava em Blumenau e que a mãe falava que eu era doida de mandar os meninos toda semana de avião aqui pra SP pra ver o pai deles? Eu tava cagando e andando. Vinham mesmo. Ih, lembra na eleição do Lula pra presidente, meu eu sempre fui petista, feito uma doida deixei 100 pau em casa pros meninos comerem mac, peguei um vôo às 8 da matina, cheguei em SP, votei e depois me mandei pra Navegantes? A mãe achou que eu tinha enlouquecido, me mandou até tomar calmante. Ah, ainda passei na Gregory, é claro, no Shopping Paulista, fiz o taxista ficar me esperando enquanto eu comprava umas roupinhas afinal não era de ferro e não sou até hoje né? Roupinha, sapatinho, reloginho, perfumezinho, bolsinha e mais um monte de merdinha é comigo mesmo.

Pai, deixa eu te falar uma coisa: Sabe o que você fez por nós? Você tirou a gente do gueto, da sobrevida, da mortadela fatiada pela metade de domingo. Do bolo pullmann uma vez por mês, também fatiado por dois um mesmo pedaço. Tubaína de quinze em quinze dias. Você tirou a mãe da fome. Lembra que ela não comia a marmita pra trazer pra gente. Meu, que horror. Que merda.

Eu vou parar pai. Eu tenho que parar pra chorar. Eu tenho que parar pra por isso que eu tô sentindo e que tá doendo no meu estômago de lembrar de quando eu tava na quinta série e ia fazer trabalho na casa das meninas tinha biscoito, pão, leite, manteiga, queijo e quando era o dia de ser lá em casa eu escondia dos meus irmãos umas mexiricas. Meu, mexirica. Era isso que eu dava pra elas. Ninguém sabia que eu não tinha pai. E sempre que tinha reunião de pais a mãe não podia ir e eu mentia dizendo que ela tinha ido levar meu irmão no médico e que o meu pai era encarregado numa fábrica e por isso não podia faltar no serviço.

Nossa, pai, sabe o que eu lembrei? De que na terceira série eu dormia na sala. Sabe porque eu dormia, pai? Pai, que vergonha, que dor, que dor, eu dormia porque eu tinha fome aí a professora de religião começou a levar um lanche pra mim, pai eu queria morrer. Eu tenho vontade de morrer. Como é que pode existir deus? Esse filho da puta? Filho da puta mesmo. E hoje eu tô aqui. Tem três porra de notebook em casa, o meu AP tem quase 200 metros, os meninos sempre fizeram escola particular, eu fiz mestrado, pai como? Me explica como. Eu não sei. Eu nunca vou entender como eu sobrevivi. Eu sobrevivi a essa merda de vida. Como pai? Oh pai, é por isso que dói tanto tudo em mim, é por isso que eu carrego essa porra de sensibilidade a flor da pele. É por isso que eu faço a merda da terapia. Porque eu sou uma bosta de uma sobrevivente inundada de culpa por ter conseguido sobreviver. Eu não tinha que ter conseguido. Eu não tinha pai. Eu tinha que ter morrido. É por isso pai que eu penso tanto em me matar. Oh pai me dá um abraço. Me segura que eu tô com tanta tontura senão eu vou cair. Pai, vem cá rápido, vem cá. Eu te amo tanto. Eu sou tão grata mas porque você deixou eu sobreviver? Porquê pai? Porque você me deu vida? Você devia ter me deixado morrer. Agora você vai ter que cuidar de mim pro resto da minha vida. Cê tá fudido. Cê vai ter que segurar minha mão pra sempre, foda-se. Cê vai ter que ficar do meu lado pra sempre, sem você eu não vou conseguir. Sem você eu morro, eu me mato, eu me acabo. E dessa vez eu juro que consigo. Por quatro vezes eu fracassei. Mas na próxima se você não estiver comigo eu juro que não falho. Eu juro. Não sai do meu lado. Não, por favor. Eu te amo tanto. Perdão pai. Perdão pai. Perdão.

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