O caminho...

Intento, ainda acanhada, entregar-me às letras, sílabas, palavras, frases e o que se pode obter dessa junção. Coisa linda a mistura das palavras.


Sempre fui encantada pela nossa Língua e tive a oportunidade de ter como mentora, na antiga quinta série, a professora de LP Maria Alice.

Seu saber e envolver a todos nós, seus alunos, fez-me, literalmente, apaixonar-me por uma mulher aos onze anos de idade

Paixão platônica, pueril, inocente e verdadeira. Nascida da admiração do saber e ir além fazendo os outros também participarem desse conhecimento espetacular, quanto se trata de se entregar à Língua Portuguesa.

Vivo pelos cantos, tanto internos quanto externos, de caderneta em punho e caneta entre os dedos. Do nada, vejo uma imagem ou ouço uma palavra perdida num bar e dali parto para uma história vinculada à alguma vivência minha, da infância difícil até a executiva promissora, e me abro para o mundo das letras.

Meus dedos percorrem rapidamente a caderneta anotando o que me for possível trazer à tona, num momento posterior, de pura entrega, dedicar-me a misturar palavras, ritmos, sentidos, além, de uma boa dose de singularidade.

É assim que construo sem pressa meus poemas, versos, sonetos, também minhas crônicas, prosas e contos.

Foi a poesia que me salvou de me destruir na minha mais pura e insólita melancolia.

Foi a poesia que me salvou de mim mesma, impediu que eu ultrapassasse a linha da imaginação e fosse para algum lugar nunca antes visitado.

É a poesia, o verso, a magnitude da construção literária que me mostram quem realmente sou.

Oras posso valer até um milhão, mas sei tão bem que não valho sequer um tostão.

Humana sou.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Conto: A Consulta

Recolhida no canto direito da cama sentiu seu corpo emitindo ondas de choque. Precisava ir ao banheiro instalado a uns seis passos dali, porém, acovardada, não ousava.

Temia que ao se levantar a agitação física - inoportuna e intrusa - aumentasse levando-a de encontro ao belo tapete branco estendido sob o piso de madeira.

De raiva iniciou nos dedos dos pés uma compressão rancorosa apertando-os com tanta força o que favorecia a cabeceira da cama se debater contra a parede num barulho agudo e irritante.

- Maldição - balbuciou.

Essa foi sua primeira palavra do dia e de horror àquela situação, bem como a todo o restante que estava por vir.

Num exercício frenético pôs-se a segurar a urina, contraindo, ao máximo, o abdômen. O medo sobrepunha à vontade de urinar. Por outro lado sentia a bexiga prestes a alagar o colchão e ainda exalar um odor asqueroso emporcalhando sua última muda de lençóis.

- Era só o que faltava - pensou em voz alta - repelindo a idéia de molhar-se toda ali mesmo.

Atentou novamente para seu pensamento. Aquietou-se: Havia necessidade de se concentrar em outra coisa - não sabia o quê – isso lhe daria um pouco mais de tempo até o primeiro comprimido do dia fazer efeito e conduzi-lá ao toalete.

Ingerira-o há quase quarenta minutos tempo suficiente para manifestar-se, todavia nada. O frenesi insano persistia, percorrendo cabeça, barriga, braços, pernas e pés.

Ocorreu enfiar outra cápsula goela abaixo. Bastava abrir a gavetinha do criado-mudo acertar a embalagem e pimba.

Sua garrafinha d' água, verdadeira e fiel companheira, tanto dela quanto do criado, estava a postos facilitando a intenção de apoderar-se da segunda pílula.

- Maldição - retornou a palavra num sussurro.

O desejo de expelir a água amarelada misturava-se agora a necessidade de dar vazão aos alimentos sólidos ingeridos no dia anterior.

Como de costume comera pouco, mas mesmo esse pouco buscava uma forma de desprender-se de seu organismo.

Mijar já não era prioridade. Inundar os lençóis transformara-se em algo pequeno perante a infeliz coincidência, comumente, denominada de 'Tipo Dois'.

Estranhava não falar cagar ou defecar. Considerava as palavras feias além de remetê-la ao que via na privada antes de puxar a descarga.

Quanto à expressão cocô jamais: NEM EM PENSAMENTO.

– Gargalhou, imaginando: - Adultos fazendo cocô. Adultos infantilizados. Adultos dementes. Adultos em-merdados.

Assim, num determinado momento da vida, não sabia mais qual, optou por utilizar a expressão ‘tipo dois’.

Obviamente só mencionava caso alguém lhe perguntasse o porquê da demora, mesmo considerando tamanha indiscrição acrescida de falta de educação.

-Tipo dois. (Filho d’uma puta curioso).

Deu um suspiro infundado e dirigiu os olhos ao criado. Foi quando percebeu que os choques haviam parado.

Enfiou-se, agora, num outro exercício de dúvida e questionamento: Conhecedora de seu organismo acreditava que ao colocar-se em pé voltaria a senti-los.

- Maldição!

Deu de cara com sua descrença. Suspeitava do corpo como quem suspeita da existência de um ser maior, sim, na mesma medida e proporção.

Passara por situações constrangedoras, não poderia desconsiderá-las a ponto de confiar num primeiro recado físico.

Decidiu-se pela segunda drágea. Melhor certificar-se por completo.

O pensamento na drágea fê-la desprezar, por segundos, a praga da urina e o infortúnio 'Tipo Dois'.

Voltou a perceber a desventura física quando o intestino enviou sinais mais agressivos, por meio de sons estrondosos, vazados pela barriga.

Assentou-se e abrigou-se nos travesseiros encostados na cabeceira da mísera cama barulhenta.

Foi quando experimentou a sensação de ter um buraco no estômago, é como um vão, não, enfureceu:

- Fome!

O suspiro, agora engasgado, apresentou-se novamente numa atitude de total reprovação às necessidades biológicas.

Todavia, considerou: - Se os choques haviam findado – a posição sentada confirmava - era o momento de aproveitar e fazer tudo que a apoquentava:

- Mijar, cagar e comer (nessa seqüência).

Pensou novamente na merda. Não lidava tranqüilamente com a idéia de todos os dias, numa típica via sacra anal, ter mais essa obrigação de caráter intestinal. Infeliz. O organismo, prá lá de fraco, presenteou-a com uma diarréia constante, fazendo com que a água do vaso sanitário não alcançasse os espirros jorrados debaixo da tampa.

Enfim, era MERDA sobre M E R D A!

Olhou novamente o criado e furtivamente abriu a gavetinha. Acertou de primeira. Retirou o comprimido e apropriou-se, claro, de mais uma dúvida:

- Um ou dois? – Pergunta implexa.

Como medida de precaução e resposta à questão optou por ingerir dois, desviando qualquer possibilidade das sensações físicas voltarem a atormentá-la. No total, somariam três comprimidos ingeridos em menos de uma hora o que certamente poderia levá-la a uma outra grandiosa e definitiva MERDA!

Glub, glub.

Voltou à posição anterior. Cobriu-se nervosamente com o edredom de malha vermelho, companheiro diário e fiel, escorregou o corpo na cama alternando o costumeiro.

Pôs-se a contemplar a parede branca, rente a porta, ansiosa por colorir. Saboreou um gosto levemente salgado nos lábios. Mecanicamente, lambeu-os.

Adormeceu devaneando num arco íris imaginando qual cor a parede acolheria melhor. Sonhou com um verde-água, cor de mar muito sereno, quando ambiciona seduzir alguém:

- Verde água. Decisão tomada.Feng shui rejeitado.

Com tanto pensamento envolto em tanta merda, não poderia ser diferente, perdeu o horário da consulta.

Melhor assim: Já estava cansada daquele repeteco semanal e de todo o blá blá blá Freudiano.

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